Jurema sagrada: uma tradição religiosa para além das velas acesas
- L. Henrique de Carvalho
- 8 de jan. de 2023
- 15 min de leitura
Atualizado: 17 de jan. de 2023

Naquele dia, o sol se pôs e fez jorrar no céu um alaranjado vívido, resultando em um dos entardeceres mais lindos que já vi. Num terreiro de Jurema Sagrada, afastado da capital Maceió, naquele sábado de março, decidi jurar meu amor eterno a meu marido dentro da ritualística dessa tradição ameríndia, cheia de mistérios e saberes. Nossas alianças foram lavadas com muita cerveja e champanhe, num cenário repleto de rosas, velas, muita fumaça e catimbó. Naquela noite se completava um ciclo da minha jornada de uma busca incessante pela ancestralidade. E foi um dos dias mais felizes da minha vida.
Essa busca pela espiritualidade começou aos 17 anos, quando finalmente decidi buscar as respostas que sempre quis desvendar, mas por alguma razão insistia em protelar, talvez por ceticismo, medo ou ignorância. Assim eu conheci o juremeiro Anderson Serpa, a convite de uma amiga pessoal que me levou a uma mesa de jurema para conhecer um pouco mais sobre a tradição.
Anderson Serpa foi guardião dos conhecimentos e práticas da religião, assim como todo bom juremeiro deve ser. Mas para além das suas funções sacerdotais, também foi pai de Clara Tainy, hoje com 9 anos, professor de artes da rede estadual de Alagoas, adorado pelos alunos que o tratavam respeitosamente com a alcunha de “fininho”, talvez em tom jocoso em relação ao seu sobrepeso. Também foi mentor espiritual, líder religioso, pai, irmão e confidente de todos aqueles que confiaram em suas mãos os caminhos da espiritualidade. Infelizmente a Covid-19 o levou em junho de 2020, mas o seu legado ficou com todos aqueles a quem sua espiritualidade tocou. Simpático e acessível, já me cativou na primeira vez que o vi.
Era 2016, cheguei careca à mesa de Jurema no bairro de Antares, em Maceió, recém aprovado no vestibular de jornalismo da Universidade Federal de Alagoas. Sentei ao lado de Anderson e começamos a conversar sobre as comunidades de terreiro de Alagoas, e eu nem fazia ideia de que ele era o juremeiro do grupo, isto é, o líder espiritual que conduzia aquele grupo. Finalizada a conversa e iniciada a reunião, foi então que percebi isso e me surpreendi. Sentei, ouvi os cânticos sagrados, ouvi a palavra dos encantados, e me encantei completamente por essa tradição. Ali mesmo, naquele dia, decidi que era com aquele juremeiro, e com aquele grupo, que iria trilhar minha jornada espiritual, cujas motivações íntimas e pessoais ultrapassam o interesse jornalístico desta reportagem.
Criado em Recife, Anderson veio de uma família de juremeiros, pais e mães de santo, mas ao decidir entender mais sobre a espiritualidade, ainda muito jovem, preferiu seguir os caminhos do espiritismo kardecista, uma doutrina europeia e bastante difundida no Brasil. Foram 15 anos na doutrina espírita, até ele mesmo decidir resgatar as raízes e se dedicar por completo às tradições de terreiro. Quem esteve com ele desde muito cedo na sua jornada espiritual foi Rafael Cavalcanti, a quem teve como um mentor no centro espírita, e que aos poucos se firmou como amigo leal e braço direito. Hoje, Rafael é o juremeiro que conduz os trabalhos espirituais da casa na ausência carnal de Anderson, que hoje se encontra entre os encantados.

“Anderson pra mim foi um pai, irmão, amigo, e tudo mais que eu não tive na vida. Não tem palavras que expliquem o respeito e o carinho que tinha por ele. Pra mim ele era imortal, quando ele morreu foi um baque. Mas a Jurema sabe o que faz, se estou onde estou hoje é porque ainda tenho uma missão a cumprir nessa Terra”, diz Rafael. O juremeiro é médico veterinário e já atuou como agente penitenciário. Com um passado turbulento, marcado por violência, bebedeiras e festas, Rafael reconhece que a Jurema conseguiu mudá-lo como uma pedra que se transformou em árvore. Criado entre cidades de Alagoas e Pernambuco, não hesitava em ir para a primeira vaquejada que tinha notícia, emendava a diversão na casa de amigos, sempre regada a muita bebida, flertes e namoros que só duravam uma noite. Já mais velho, com a carreira na segurança pública iniciada, tinha nas armas um sentimento de segurança em meio às paranóias e perseguição. O calor das diversões esfriou, e Rafael encontrou-se profundamente deprimido. Foi quando, por uma súplica da sua mãe, resolveu buscar apoio para as dores da alma num centro espírita.
“Eu costumava levar minha arma para as ações de caridade do centro espírita, de tão fanático que era por violência. Hoje lidero e conduzo uma casa de religião passando uma mensagem de respeito, amor e solidariedade. Eles [os espíritos] me mudaram completamente. Pra melhor”, relata o juremeiro.

Ainda no centro espírita, Rafael encontrou em Anderson a figura de um mentor. Foi através dos seus conselhos e ensinamentos que ele conseguiu superar a melancolia e viu um propósito novamente. Na ocasião em que Anderson decidiu abandonar o espiritismo e se dedicar totalmente à Jurema, Rafael conta que ficou dividido entre acompanhar o mentor, e portanto também deixar para trás o lar espírita, ou ficar na casa que primeiro o acolheu. “Nesse tempo o mestre [de Jurema] incorporado em Anderson me disse: ‘vai sair mesmo ou vai ficar aí esperando?’ Foi aí que entendi que minha missão era estar ao lado dele mesmo”, conclui Rafael.
Ao relembrar os meses que antecederam o falecimento do amigo e mentor, os olhos de Rafael marejaram de lágrimas. Ele conta que numa comunicação, os espíritos lhe disseram: “Pois é, Rafael, sempre fiel e honrando a missão. Você não precisa nos provar mais nada”, tal era sua dedicação e comprometimento para com a espiritualidade. “Tanto é que estou onde estou hoje”, completa, ao se referir ao fato de que ele foi o indicado para liderar o terreiro no lugar do amigo.
Rafael já era meu padrinho, e depois da partida de Anderson, também se tornou responsável por cuidar da minha espiritualidade. Já tínhamos carinho um pelo outro, assim como todos os outros que fazem a família espiritual no terreiro.

É Jurema, meu bem, é Jurema
A religião de matriz ameríndia Jurema Sagrada carrega o nome de uma planta, em respeito à ancestralidade indígena e o uso de ervas para curar as dores do corpo e da alma. Reza a lenda que foi num pé de jurema (árvore de folhas miúdas, que se fecham ao entardecer e protegidas por espinhos traiçoeiros) que Jesus Cristo teria descansado, em seus momentos de angústia. Carregando símbolos do catolicismo popular, dos rezadores e benzedeiras, junto ao respeito e tradição da ancestralidade negra e indígena dos brasileiros, essa religião preserva as raízes antropológicas desse povo, especialmente do nordestino. Espíritos ancestrais se comunicam através da mediunidade dos membros da religião, contribuindo para o desenvolvimento humano dos devotos dessa planta sagrada. Tal qual fumaça, os encantados (assim chamados os espíritos da Jurema) se espalham pelo ambiente e alcançam os lugares esquecidos do mundo e da mente.

No imaginário folclórico do senso comum, a Jurema é vista como uma grande festa em que os adeptos embriagam-se em bebida e fumaça para celebrar a vida. Mas vai muito além de tudo isso, como costumava lembrar o juremeiro Anderson. Ele costumava dizer que muitos achavam que a Jurema se reduzia a “acender velas e dançar no salão”, mas insistia em relembrar a todos aqueles ao seu redor que era um tradição séria, com fundamentos ancestrais e que buscavam, acima de tudo, a melhoria do caráter dos indivíduos.
A Jurema Sagrada, assim como é conhecida, é a única tradição religiosa genuinamente brasileira. Com origens na pajelança indígena, o culto gira em torno de três “juremas”: a) a bebida jurema; b) a árvore jurema; e c) a própria organização religiosa chamada jurema. No culto, os adeptos buscam os conselhos dos encantados - espíritos antepassados de pessoas que já viveram na Terra. Esse contato com a ancestralidade é feito através do manuseio de ervas, bebidas, fumaça e diversos outros materiais utilizados para possibilitar a manifestação dos encantados na Terra, inclusive animais. A bebida chamada jurema representa o principal elo dessa conexão. Através dela, a ligação entre os discípulos e os espíritos é intensificada, permitindo o transe da incorporação. A feitura dessa bebida é guardada a sete chaves pelos juremeiros.

“Não é nada parecido com ayhuasca”, explica o juremeiro Rafael. “Lá eles realmente têm a consciência alterada num estado alucinógeno. A Jurema não faz isso, ela simplesmente fortalece o elo entre o médium e o encantado. É uma forma de eles estarem mais próximos. Quem busca a Jurema pra dar uma onda, está buscando no lugar errado.”
“Tomar um gole de Jurema é se limpar, é se fortalecer e é se entregar”, diz Karla Cavalcanti, irmã de Rafael e também juremeira. Ela explica que a bebida dá a ela uma força íntima capaz de fazê-la enfrentar o maior dos inimigos com a faca nos dentes. “Ao mesmo tempo me faz botar os pés no chão, entender de onde eu venho, e para onde eu vou”, completa.
A tradição ameríndia inicia, justamente, no culto aos ancestrais indígenas, chamados de “caboclos”. “São os grandes patronos da Jurema”, explica Rafael. “Se temos a Jurema hoje, é devido aos índios, precisamos respeitá-los e louvar o legado que eles deixaram para nós”. Com cantigas em português, mas também em línguas nativas, como tupi, os encantados das matas são evocados para trazer sabedoria e guiar os trabalhos da Jurema. Podem incorporar nos médiuns, gostam de comer frutas frescas e pitar seus cachimbos para fazer limpezas espirituais nos que estão presentes.

O culto aos caboclos é seguido pela louvação aos pretos velhos, espíritos consagrados da espiritualidade afrobrasileira, de negros escravizados idosos, representando a resiliência de sobreviver mesmo diante de condições difíceis de vida. Com cantigas calmas, acolhedoras e que mais parecem um abraço na alma, os pretos velhos chegam curvados em seus médiuns, pedindo logo seus cachimbos, alguns ramos de arruda e um gole de vinho, para seguirem os trabalhos espirituais de limpeza e aconselhamento dos discípulos.
Após os pretos velhos, são louvados os mestres de Jurema, como assim são chamados. “Os mestres de Jurema são mestres de conhecimento, sabedoria e ciência, apesar de muitos deles em vida não terem sabido nem escrever”, explica Rafael. A “ciência” da Jurema, muitas vezes evocada nos cânticos, representa essa sabedoria sobre o que é o viver, a razão da existência humana na Terra, e os caminhos para levar uma vida completa, alegre e tranquila. Os mestres são espíritos encantados de homens que, em geral, tiveram trajetórias solitárias, nômades e místicas. Tidos como curandeiros, bruxos, mandingueiros, manipulam ervas e outros catimbós para ajudar ou prejudicar aqueles que cruzavam o seu caminho. “A noção de pecado na Jurema não existe, o que há é um código ética próprio sobre o que é certo e errado. Muitos mestres, em vida, mataram muita gente, mas hoje estão aqui, voltando à Terra através dos médiuns para aconselhar sobre o que é a vida”, explica Rafael.
Por fim, o culto da Jurema é encerrado com a louvação das mestras, espíritos encantados de mulheres que assumem a versão feminina dos mestres. Desde mestras que foram parteiras, benzedeiras e curandeiras, até mulheres que se prostituíram ou que sofreram trágicas histórias de amor, essas mulheres errantes também cumprem a missão de voltar à Terra através das incorporações para aconselhar sobre a vida.

“Todos os encantados já estiveram no lugar que estamos hoje, tocando nossas vidas terrestres. A diferença é que eles já passaram para o outro lado há muitos anos, e sabem mais da gente do que nós mesmos”, completa a juremeira Karla.
“No fim, a Jurema é um culto de memória. De honrar a memória dos nossos ancestrais, de lembrar do nome deles e não deixá-los ser esquecidos após a morte”, explica Rafael.
O caminho das raízes
O culto da Jurema na família de Anderson começou com seu tio sanguíneo, Jocimar Magalhães, em Recife. Ainda muito jovem, “Mazinho”, assim como era chamado pelos mais íntimos, passou pelos rituais iniciáticos da religião pelas mãos de um catimbozeiro afamado na capital pernambucana conhecido por “Carlinhos Macumba”. Iniciado adolescente, Jocimar amadureceu junto aos valores da religião, e naturalmente os saberes ritualísticos foram transmitidos a outros familiares e novas gerações. Jaira Magalhães, irmã de Mazinho, também passou a cultivar suas raízes no culto, e transmitiu a mesma fé a seus três filhos: Anderson, Sheyla e João. Anderson era o único irmão com pai diferente, a quem nunca chegou a conhecer. Toda a família veio a Maceió por conta de uma mudança no emprego no pai de Sheyla e João, padrasto de Anderson, que os obrigou a deixar a cidade natal.

Tendo iniciado seus estudos mediúnicos na doutrina espírita, Anderson reconectou-se com suas raízes ancestrais com ainda mais vigor. Passou pelos rituais iniciáticos junto com seu irmão João pelas mãos do tio, e os dois foram os únicos herdeiros espirituais do seu legado. Em 2018, Jocimar Magalhães se encantou, deixando somente em Anderson e João suas sementes plantadas para dar continuidade ao culto. Mais recentemente, em 2022, enquanto esta reportagem era construída, também se encantou a mãe dos meninos, Jaíra Magalhães.
No início, a Jurema era celebrada na casa de Jaira, no bairro de Antares, em Maceió. Mas Anderson tinha um sonho de ver uma casa de Jurema se erguer do mato seco, e se pôs a buscar um terreno nos arredores de Maceió em que pudesse concretizar seu objetivo. Não tardou para que, em 2015, um terreno um pouco depois do município de Satuba o encantasse. Convocou seus discípulos de jurema, que também o tinham como amigo, e propôs a compra conjunta. Quase ninguém tinha alguma reserva guardada, mas mesmo assim, como um encanto de Jurema, todos que se comprometeram conseguiram de alguma forma levantar o dinheiro, através da venda de um carro, moto, ou um serviço extra que apareceu em boa hora.
“Anderson tinha essa coisa de nos impulsionar para frente. A gente pensava que não ia conseguir, mas ele fazia com que a gente abrisse os olhos para oportunidades que ainda não tínhamos enxergado ainda, tudo para o nosso crescimento, não só como membro da religião, mas também como pessoa”, conta Laura Bento, professora, e hoje também juremeira.
O terreno foi comprado e o trabalho só havia começado. Incansáveis foram os dias em que o próprio Anderson, assim como Rafael e todos os outros membros da comunidade, não hesitaram em trabalhar na construção daquele sonho coletivo. Cada com a ferramenta que mais lhe apetecia, da enxada à colher de pau, e roçaram mato, arrancaram coqueiros, levantaram muro, calcularam o tamanho dos quartos, contrataram pedreiros, e foram aos poucos dando forma a o que viria a se tornar um terreiro operante.

“Até hoje a obra não para. De lá pra cá já avançamos muito, hoje temos uma estrutura que muitos terreiros por aí não têm. Mas ainda há muito trabalho a ser feito, preciso morrer sabendo que fiz minha parte pra deixar essa missão cumprida”, conta Rafael.
O impulso pela construção também é comum ao irmão de Anderson, também juremeiro, João. Ele também movimentou suas próprias economias pessoas para adquirir um terreno no Benedito Bentes, em Maceió, onde iniciou, aos poucos a levantar seu próprio terreiro. “São duas casas irmãs, que em conjunto vão crescendo o trabalho. A Jurema é assim mesmo, precisa ramar, dar frutos e vagens. A tradição precisa se espalhar, para que mais pessoas conheçam o que é Jurema”, conta João.
Mestre de obras de carreira, o juremeiro empreendeu a ideia de fabricar os próprios tijolos, feitos com o barro do próprio terreno. Foram vários os mutirões para cavar o barro, preparar a massa e fazer os moldes para deixar os tijolos secarem, para depois empilhá-los amparados pelo cimento. “Foi muito suor, muita luta, muitos calos nas mãos, nos pés, mas no fim faz valer a pena. Eu sei que o meu trabalho está nas paredes do barracão”, relata Marina, esposa de João e discípula de Jurema, ao se referir à construção do terreiro.
“Não é um trabalho fácil, mas a gente faz com um sorriso no rosto, porque é assim que os mestres [de Jurema] nos ensinam”, explica João. “A gente não sabe o que é dificuldade, muitos mestres falam das suas vidas nos próprios pontos de Jurema, que tiveram fome, sede, vagaram sozinhos no meio do mundo sem ninguém para ajudar. E hoje voltam à Terra para nos ensinar sobre o que é a vida.”
Processo de fabricação de tijolos de adobe no terreiro do juremeiro João
Ao lado do juremeiro João, como seu braço direito, está um ex-seminarista, que teve na Igreja Católica o primeiro caminho para a espiritualidade. Railton Teixeira, também jornalista, tinha o sonho de ser padre, mas foi na Jurema que encontrou verdadeiramente as respostas que sempre buscava. “Eu achava que era esquizofrênico, mas na Jurema entendi que os encantados [espíritos] são parte da nossa vida, e estão aqui para nos ensinar”, conta o juremeiro.
Acompanhando o juremeiro João, está Analice Silva, que antes de se encontrar na Jurema espiritualmente, esbarrou com ela primeiro na academia. Em 2017, escreveu sobre a tradição na sua tese de pós-graduação em Letras e Linguística, pela Universidade Federal de Alagoas. Intitulada “Entre lírios e liras: a mitopoética utópica da Jurema Sagrada”, a pesquisadora se debruçou sobre as cantigas e músicas da tradição. E ao investigar os terreiros e entrevistar os membros da religião, a curiosidade de pesquisa transformou-se em interesse genuíno pela busca espiritual. “Eu andava muito aperreada, não estava dormindo direito, e foi um banho de ervas que me trouxe o conforto. Ali eu sabia que aquele caminho me faria bem”, conta a pesquisadora.
O chamado da Jurema
Sendo uma tradição religiosa espiritualista, ou seja, que lida diretamente com consciências do pós-vida, a Jurema é uma ciência que guarda muitos encantos e mistérios, assim como cantam as louvações.
Na ocasião do falecimento de Anderson, em 2020, Rafael, seu braço direito até então, assumiu a missão de continuar o sonho de construir um espaço para ajudar as pessoas. Nessa época, não tinha muita proximidade com suas meias-irmãs, uma adolescente e outra ainda criança pequena, filhas do segundo casamento do seu pai. Contudo, poucos dias após a morte do amigo, Rafael surpreendeu-se com um sonho revelado pela meia-irmã adolescente num áudio de whatsapp. Anderson tinha a visitado no sonho, havia uma mata, alguns caminhos, e outros elementos ligados à religiosidade ameríndia. “Sinto que foi um chamado”, conta JC, hoje com 17 anos e já juremeira. “Estava no meu destino me tornar parte dessa história, e aqui estou”. Apesar da pouca semelhança física, a moça guarda o porte e o jeito bruto do meio-irmão Rafael. Depois de contar o sonho e visitar o terreiro, JC passou a frequentar os eventos da casa, até receber o aval da Jurema para poder passar pelos ritos iniciáticos e se tornar, enfim, juremeira. “Para mim é uma honra, hoje posso bater no peito e dizer que a Jurema está em mim. E não foi por acaso, Anderson foi me buscar em sonho e estou aqui hoje por causa dele”. Pensa em tornar-se médica e avançar nos estudos sobre ervas medicinais, para de alguma forma levar adiante os conhecimentos que aprende na religião. “Eu sei que hoje uma erva pode curar uma dor da alma, uma dor do espírito, mas também sei que muitas ervas são usadas para curar uma dor no corpo. Isso é um conhecimento que não pode se perder”, conta a jovem juremeira.

“Muitos são chamados, poucos são os escolhidos”, costumava falar o juremeiro Anderson. Tornar-se juremeiro exige o mesmo compromisso com o sacerdócio como uma feira, um padre, um pastor ou um rabino. É preciso de renúncias do interesse pessoal, da vida material, em prol de um propósito maior. “Hoje na internet o que se vê é deprimente”, desabafa Rafael, em referência aos diversos registros de condutas inadequadas por parte de adeptos não só da Jurema, mas de outras tradições afrobrasileiras. “Já somos um povo perseguido, demonizado, e com o que tem hoje na internet é para acabarem de nos difamar”. O juremeiro explica que isso só contribui para reforçar a visão folclórica e pitoresca do senso comum em relação às tradições de terreiro. “É muito lindo ver uma entidade com a melhor roupa do mundo, dançando no salão e todos aplaudindo”, conta em tom irônico. “Alguns parecem até boate, tem luzes coloridas e gelo seco. Isso é um absurdo. Eu quero ver o compromisso desse povo, a busca pela melhora do ser humano, ou se a Jurema só se resume a festas no salão”.
“Acho que louvável você queira mostrar a gratidão que tem por uma entidade dando uma grande festa, com muita fartura de bebida e comida. Mas também temos que lembrar de onde vem a Jurema, do legado e sabedoria que os índios deixaram para nós”, completa a juremeira Laura. “Um encantado de Jurema de verdade não precisa disso. Não precisa do vestido mais caro, de peruca, maquiagem, unhas postiças, como vemos na internet. Isso é mais vaidade do médium por trás daquela comunicação”, explica.
Após uma breve pausa na discussão sobre os famigerados vídeos sobre a Jurema disponíveis na internet, o juremeiro Rafael centra o olhar no horizonte e dispara: “Se você quer realmente conhecer o que é a Jurema, o lugar não é a internet. O melhor lugar é no terreiro, ouvindo os mestres. É assim que se aprende o que é verdadeiramente a Jurema Sagrada.”
A Jurema na academia
A tradição do catimbó tem despertado o interesse de pesquisadores de diversas disciplinas, e tem figurado em mais trabalhos acadêmicos nos últimos anos. Na ferramenta de busca de produções acadêmicas do Google, são 6.590 resultados para as palavras-chave “jurema sagrada”, e 2.940 resultados para a palavra-chave “catimbó”.
Recentemente, a Folha de São Paulo organizou uma série de reportagens informando sobre os avanços na pesquisa do uso do princípio ativo da Jurema-preta, uma das árvores sagradas do culto, no tratamento terapêutico de depressão.
A Jurema na cultura
Desde Iracema, de José de Alencar, a Jurema fez suas aparições nas produções culturais brasileiras. Nesse clássico do romantismo brasileiro, a bebida é citada como um elemento ritualístico da tribo da protagonista, através do qual seria possível um contato transcendental com Tupã, além de efeitos alucinógenos. Embora um pouco folclórica, essa citação ainda tem relevância, por indicar sua existência. O poeta Ascenso Ferreira, integrante do modernismo, também versou sobre a Jurema em sua produção poética. Na produção cultural mais recente, a religião de raiz ameríndia já serviu de inspiração para diversos artistas também na literatura, na música e no cinema.
A banda pernambucana Cordel do Fogo Encantado, em seus primeiros álbuns trazia muitos elementos relacionados ao catimbó, na inspiração lírica, nos videoclipes e em toda a estética da banda. Ultimamente, essa veia inspiradora tem se dissipado entre novos temas, mas a faixa Chover era uma das prediletas do juremeiro Anderson.
Cordel do Fogo Encantado - Chover (ou Invocação para um Dia Líquido)
Outra artista musical contemporânea que sempre traz em suas composições as raízes da Jurema, inclusive nos instrumentos utilizados nos arranjos, como os maracás e tambores, é paulista, mas naturalizada pernambucana, Renata Rosa. A compositora conviveu por muitos anos nas tribos Kariri-Xocó, em Alagoas, e sua produção musical não cansa de fazer homenagem a essas raízes ameríndias.
Renata Rosa - Jurema
Até o samba carioca teve sua participação em citar alguns rituais juremeiros, ainda que também com tom jocoso e até folclórico. Dudu Nobre, em sua composição Juremeiro, conta de um desejo da volta de um amor perdido através da ajuda de um juremeiro.
Juremeiro - Dudu Nobre
A pernambucana Alessandra Leão também tem nos encantos da Jurema uma grande musa inspiradora para suas composições. Mais recentemente, a artista também tem investido em releituras das próprias cantigas sagradas que são cantadas no culto.
Alessandra Leão - Arruda e Sossego
Rodrigo Ciampi também é um artista que tem reinterpretado as próprias cantigas cantadas nos rituais com sua sensibilidade e integrando os instrumentos como o maracá nas suas composições.
Rodrigo Ciampi - Maria Luziaria
Outro destaque que vale a pena ser citado é Maciel Salu, com uma discografia inteira inspirada em tradições religiosas afro-brasileiras, incluindo os encantos do catimbó.
Maciel Salu - Jurema
No campo audiovisual, iniciativas como o Cine Terreiro, organizado no Rio Grande do Norte, tem multiplicado o interesse de novos realizadores em produzir obras cinematográficas que tragam o culto da Jurema, assim como seus adeptos, como tema.
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